
Imagina a cena: alguém da família passa por um momento difícil e, ao olhar em volta, percebe que "tem um psicólogo em casa". Pode parecer lógico pensar: "Por que não pedir ajuda a quem me conhece tão bem?" No entanto, quando olhamos para essa situação pela lente da psicanálise, fica claro por que psicólogos — e principalmente psicanalistas — não devem atender parentes ou pessoas muito próximas. E não é por falta de carinho, mas justamente porque o vínculo afetivo cria barreiras invisíveis, mas muito poderosas, no processo terapêutico.
Sigmund Freud, o pai da psicanálise, sempre destacou que o processo analítico precisa de um espaço seguro, onde a pessoa possa dizer tudo, até aquilo que normalmente não diria a ninguém — e, às vezes, especialmente o que não diria para um familiar (Freud, 1912). A análise funciona como um espaço de liberdade, onde é possível entrar em contato com sentimentos difíceis, desejos, culpas, raivas e medos. Mas como alguém poderia falar abertamente sobre suas questões mais íntimas se está diante de um tio, primo ou irmã? A resposta é simples: não falaria. Mesmo sem perceber, a pessoa começaria a esconder partes de si, com medo de julgamento ou de ferir o outro.

Além disso, Freud já dizia que o inconsciente fala sem filtros. E para isso acontecer na terapia, é preciso que o vínculo com o analista seja especial: uma relação de escuta profunda, mas neutra. Quando o psicólogo conhece o paciente intimamente, como acontece entre familiares, ele carrega consigo memórias, histórias, e até opiniões formadas sobre aquela pessoa. Isso impede a escuta aberta e verdadeira, porque o olhar do psicólogo já está "contaminado" por tudo o que sabe da vida do outro (Freud, 1915).
Jacques Lacan, outro grande nome da psicanálise, reforça essa ideia ao lembrar que o terapeuta precisa ocupar um lugar vazio, um espaço "limpo", para que o paciente possa projetar suas fantasias, seus conflitos e, assim, entrar em contato com seu próprio inconsciente (Lacan, 1973). Se o terapeuta é um parente, ele não está nesse lugar neutro — está no lugar do pai, da mãe, do irmão, com todo o peso e a história que essa posição carrega. Isso cria um bloqueio no processo terapêutico, pois o familiar não é mais só o ouvinte, mas também alguém que faz parte do enredo das dores e das alegrias do paciente. Isso é complementado por Donald Winnicott ao dizer que é necessário o analista estar "inteiro e vazio", ele trabalha esse conceito em várias obras, ao falar sobre a função do analista como alguém que sustenta um espaço seguro, suficientemente neutro, para que o paciente possa existir e se expressar (Winnicott, 1960).
Assim, mais do que uma regra, esse cuidado é uma forma de proteger a qualidade do vínculo e a profundidade do processo de análise. Para cuidar, é preciso indicar o caminho para outro profissional, alguém que, de fora, possa escutar sem o peso da história familiar, e assim, realmente ajudar.
Referências
Freud, S. (1912). The Dynamics of Transference. The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud.
Freud, S. (1915). Observations on Transference-Love. The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud.
Lacan, J. (1973). The Four Fundamental Concepts of Psychoanalysis.
Winnicott, D. W. (1960). "The Theory of the Parent-Infant Relationship".
In: The Maturational Processes and the Facilitating Environment: Studies in the Theory of Emotional Development. London: Hogarth Press, 1965.
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